Toda saudade

Outro dia ele perguntou qual era minha lembrança mais antiga. Pensei demorado. Pensei do jeito que a gente pensa quando sente medo da resposta. Eu lembro de tudo, pensei. Mas respondi:

“Eu lembro da piscina do meu prédio em São Paulo. De estar lá com minha mãe, meu pai, alguns vizinhos. Da gente aprendendo a nadar sem bóia, tentando cruzar o lado mais curto da piscina, nadando cachorrinho da escada até os braços dos nossos pais.”

Eu lembro muito desse prédio – da fachada muito muito branca. Lembro do play, da área interna do play, que tinha chão de ardósia. Até hoje eu gosto do friozinho que faz quando a gente encosta na ardósia. É o único piso “frio” que é aconchegante, porque é escuro. E lembro do apartamento também, da cor do carpete, do mostarda anos 70 dos armários da cozinha; lembro de um ou dois castigos, de ter construído uma rota de fuga para os meus bichinhos de pelúcia caso eles quisessem escapar durante a madrugada.

“Eu lembro muito de São Paulo,” continuei, meio assustada por lembrar de tanta coisa. “Eu tinha menos de cinco anos nessa época. Faz vinte anos isso.”

Não que eu nunca tivesse parado pra pensar no assunto, mas começou a me impressionar a riqueza de detalhes.

“Olha que loucura: eu lembro da última vez que senti o cheiro do meu apartamento de São Paulo, já em Vitória, quando minha mãe resolveu fazer uma faxina e encontrou um envelope com chaves antigas.”

E desde quando chave tem cheiro, vocês me perguntariam. Não perguntem. Mesmo com toda a rinite do mundo, o cheiro ainda é o gatilho mais potente da minha memória. E eu às vezes me saboto. Sei exatamente que desodorante comprar para reviver uma determinada época da minha vida. O Rexonna teens roxinho ainda causa muita melancolia.

“Eu lembro de tudo. É por isso que eu escrevo,” disse, antes de desejar boa noite.

***

E daí outro dia ele me disse, tentando escapar de assistir ao set de um DJ das antigas: “Eu vivi essa época muito intensamente, não preciso reviver isso.”

(Toda saudade é uma espécie de velhice)

Eu entendo o raciocínio. Nostalgia pra quê? Todos adoramos Midnight in Paris, right? Eu sei eu sei. Ninguém mais apaixonada pelo contemporâneo do que eu. Eu estudo isso, todos os meus escritores favoritos estão vivos (Shakespeare não conta porque ninguém consegue me provar que não é lenda). Mas e se eu te disser que pre-ci-so? Eu gosto de sentir saudades, é tipo um vício. Se fico muito tempo sem, vou lá e encontro (o desodorante certo, o drink certo, a música certa). Faço orelhas nos livros pra isso mesmo. Mas não te entristece? Entristece um pouco. Mas é que pior seria esquecer.

(Toda saudade é uma espécie de velhice)

Tem um filme que passava direto na sessão da tarde quando eu era criança, em que um homem e uma mulher se encontram numa espécie de limbo entre a vida e a morte – uma cidade superlegal onde você passava uma semana, vestindo uma toga branca, aguardando o seu julgamento final. Era uma comédia. O cara tinha vivido uma vida meio errante e ficava hospedado num hotel super fulero, enquanto a mulher, que era tipo a madre teresa de tão boazinha, ficava num 5 estrelas. Não me lembro como eles se conhecem, mas claro que se apaixonam. Outro dado interessante desse filme é que as pessoas podiam comer o quanto quisessem sem engordar, porque na real já estavam mortas. O julgamento era pra decidir se suas almas iriam evoluir, por já terem aprendido tudo que precisavam na Terra, ou se teriam que reencarnar. Durante o processo, organizado como um tribunal de juri, promotoria e advogados debatiam com base no filme da vida dessa pessoa (e é por isso que estou fazendo essa sinopse meio longa, desculpem). Havia uma fita. Gravada, com todos os momentos da vida do indivíduo. Desde que vi esse filme pela primeira vez essa fita passou a ser o meu grande sonho. Seria muito bom poder rever uns 2 ou 3 highlights.

(Mas toda saudade é uma espécie de velhice)

E essa aí em cima é uma citação do Grande Sertão: Veredas, que eu até localizaria e referenciaria direitinho, só que perderíamos o momento. No fim das contas eu entendo o que P. quis dizer. E acho até que ele está certo.

Acontece que as minhas memórias são irresistíveis.

Sobre L.

Luiza S. Vilela escreve. E basicamente é isso. Mas, fora isso, nasceu acidentalmente em São Paulo, é capixaba de criação and coração e carioca por opção desde 2005. Fez letras na PUC, mestrado em literatura por lá também, trabalhou no mercado editorial um tempo e hoje freela de casa com a catiora Kate cochilando em seu pé. Acredita no vinho, no amor e no feminismo como salvação para todo o mal. Tem bem mais no www.luizaescreve.com Ver todos os artigos de L.

4 respostas para “Toda saudade

  • Ju

    Lu, muito engraçado você escrever sobre isso agora! Eu ando em uma agonia de querer tirar foto de tudo, do meu colégio, da casa dos meus avós, dos mínimos detalhes. Esse fds visitei minha avó paterna, na tijuca, e fiquei pensando ‘como eu vou mostrar a casa dela pros meus filhos? tenho que fotografar’. Muito louca? Nessa mesma vibe, outro dia, eu deidi que tinha que começar a escrever sobre meu namoro, meus casinhos. hahaha Acho que estou nessa de minhas lembranças serem irresistíveis também.Que bom 🙂

  • L.

    Que engraçado, Ju. Eu já tive mais medo dessa vontade, no sentido de achar que estava olhando pouco pra frente, mas é uma matemática simples: Alice não existe sem essa bagagem, e eu não funciono sem Alice. Ontem, quando estava assistindo ao 5 episódio de Girls, tive uma pequena epifania: a Jessa e a Hanna estão discutindo a possibilidade da Hanna dar pro chefe, e a Hanna não entende por que ela deveria fazer isso, já que o chefe é velho e pouco atraente. A Jessa responde: “For the story”.

    É um pouco isso. It’s for the story.

  • L.

    e o filme, a quem interessar possa, é esse aqui: http://www.imdb.com/title/tt0101698/

  • paulamaria

    Agora eu vou passar o restante do dia pensando nisso, eu acho. Engraçado procurar essa memória na cabeça… E by the way, cheiros também me marcam muito mesmo eu também sendo uma pessoa rinítica. No momento, por exemplo, o hálito do colega ao lado me incomoda profundamente…

    Ah!
    E o chão da garagem da minha casa onde cresci também era de ardósia. Como é o chão da garagem da casa do meu namorado hoje em dia…

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